Edital

2024-1: Espaço público. Projetos, Conceitos, Experiências.

O próximo número do Cadernos de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo quer discutir o espaço público.

O espaço público é o lugar do exercício da cidadania e da construção contínua da cidade. É Memória, passado. E projeto, futuro. E, também com nossa participação, experiência no tempo presente. Presença na ação do projeto e da construção da existência e da possibilidade de existirmos, juntos.

O conceito de espaço público urbano leva-nos a um território de uso comum e posse coletiva que funciona de interface entre o domínio público e o privado. Espaço consuetudinário das festividades, celebrações e manifestação das causas políticas e exercício do direito de cidadania. Um sistema vascular onde flui a vida marcada pelo ritmo e dramaturgia próprios de cada cidade. Local de contatos relacionais sociais e de encontro com a comunidade, onde na “a apresentação do eu com a vida cotidiana” (Goffman, 1956) se manifesta a forma como cada indivíduo orienta e sustenta o seu desempenho em relação ao outro em “sítios onde os desconhecidos convivem em estreita proximidade sem deixarem de ser desconhecidos” (Bauman, 2006, p. 66).

A cidade pública é atualmente tema dominante das políticas sociais de coesão social e territorial, da economia urbana, ressurgindo como objeto de estudo e pesquisa nos meios académicos e científicos. Os espaços públicos voltam a ter uma função vital na vida da sociedade, agindo como “um `serviço público auto-organizado´, um recurso compartilhado no qual as experiências e valor são criados” (Mean e Tims, 2005).

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O PLANEJAMENTO E ADAPTAÇÃO ÀS MUDANÇAS CLIMÁTICAS

O projeto do espaço público é normalmente uma conferência com o vazio, com o ambiente aberto onde as condições climatéricas não são controláveis. Embora o clima seja um elemento importante do ambiente urbano, “não é habitualmente considerado no planeamento urbanístico” (Alcoforado et al., 2010, p. 43). Os desafios emergentes da crise climática tornaram inadiável a inclusão no planejamento urbano de medidas e ações de adaptação e mitigação do impacte dos seus riscos para os assentamentos humanos. No planejamento dos assentamentos humanos, a adaptação pode ser antecipatória ou reativa, bem como incremental e/ou transformacional. Todavia, a intensidade, frequência e duração dos fenómenos resultantes das alterações climáticas exige uma colaboração entre o desenho do projeto e a ciência do clima: “Há muitas questões sobre como cientistas e designers (arquitetos e urbanistas) podem trabalhar juntos de forma diferente nas próximas décadas para lidar com o calor severo, chuvas fortes, tempestades e inundações, e suas ramificações para a vida social e o espaço público, à medida que esses fenómenos se intensificam e afetam cidades e paisagens em todo o mundo” (Kate Orff, 2016, p. 164).

A NECESSIDADE DO DESENHO URBANO

Conquanto, as insuficiências do modelo funcionalista tenham sido objeto de múltiplas críticas, o zoneamento, enquanto prática e `doutrina urbanística´, continua a ser adotado pelas políticas públicas como instrumento base no planejamento urbano. Neste modelo da urbanística moderna o espaço, enquanto domínio público, é concebido como sistema espacial para acomodar infraestruturas. Esta prática tem conduzido à ideia de uma da possível desconstrução do espaço público, associada ao conceito de `não-lugar´, de Marc Augé (2005) para quem o não-lugar existe como um lugar que não é relacional, identitário ou histórico; ou de `espaço vazio´ na aceção dada por Jerzy Kociatkiewicz e Monika Kostera aos lugares aos quais não se atribui qualquer significado (1999).

Embora a escala do desenho urbano seja equacionada nos regimes jurídicos de ordenamento do território, na verdade o plano de urbanização ou o plano de pormenor muito raramente são adotados como forma de planeamento das cidades, sendo manifesta a ausência do desenho urbano no planejamento das cidades. Esta questão não é nova. Já na década de 60 do século passado Constantinos Doxiadis (1975), colocava nos seus discursos e textos sobre a Ekistics Theory , a questão da transição entre “a cidade-máquina e a cidade-organismo”, designadamente a relação entre sistemas biológicos e sociais. Este tema ganha especial atualidade no contexto do planejamento das cidades contemporâneas, especialmente os seus territórios pós-suburbanos.

O espaço público como projeto de “arquitetura da cidade” também inclui a genealogia do projeto vernacular, em sua diversidade de morfologias, de ângulos visuais inesperados e perspectivas múltiplas. E, da mesma forma, a linhagem do projeto erudito e a prevalência da ortogonalidade, da geometria e da regularidade no tecido urbano e na imagem urbana da cidade.

AS NOVAS FORMAS DE REPRESENTAÇÃO DA CIDADE

Ao longo dos séculos têm surgido novas iconografias das cidades, em todas está presente a representação dos espaços públicos. A planta da Roma oitocentista de Giambatista Nolli é disso um bom exemplo, uma vez que integra os “espaços quasi-publicos” ou “espaços públicos internos”[1]. Hoje, a questão do desenho urbano coloca-nos frente as novas formas de representação do espaço suportadas pelos sistemas digitais, um tema que seria de interesse explorar sob diversas perspetivas como por exemplo:

A participação pública e o e-governance - Os meios informáticos de que hoje dispomos constituem uma ótima ferramenta para as tarefas da administração pública focadas no conceito de urbanismo digital e de democracia eletrônica aplicados à governança local. Por outro lado, não deixa de ser curioso explorar o planeamento virtual, designadamente através dos videojogos[2] que permitem imaginar e simular uma ideia de cidade como oportunidade de participação pública em meio a um ato de puro divertimento.

Desenho urbano por transformação digital - A aplicação de inteligência artificial (IA) fundida com dados geoespaciais, ciência e tecnologia, como a Geospatial artificial intelligence (GeoAI)[3] veio permitir espacializar dados, criar mapas interativos, visualizar e explorar a informação recolhida no território, adicionar dimensão 3D ou revelar padrões espaciais, desafios e conexões inexploradas. Todos estes novos mecanismos informáticos vão implicar uma revolução nas metodologias e processos de planejamento urbano com claro impacto na forma como os governos municipais e os urbanistas interagem com a cidade e os seus habitantes.

A documentação e o mapeamento do espaço público como questão primeira na articulação espacial no projeto e na construção de um discurso sobre a arquitetura e a cidade se revelam também nos croquis, nos desenhos técnicos construtivos, precisos e abstratos, nas perspectivas que, pela presença de gente, destacam e expressam o desejo e a ambiência propícia ao uso dos espaços. Na fotografia e no cinema, quando a cidade é a expressão da dinâmica cotidiana, da cultura da vida urbana.

A CONSTRUÇÃO DO LUGAR

Um dos desafios que se coloca ao planeamento urbano é o da “construção-do-lugar”, isto é, o da capacidade de conceber um espaço geometricamente definido que possa ser transformado em “lugar” onde por sua vez se forme o “sentido do lugar” constituído por sistemas de signos e produzido pela prática quotidiana dos residentes e passantes. Na ótica de Michel de Certeau “o espaço é um lugar praticado” (2006). O lugar é uma porção de espaço “que secreta significado e pressupõe atribuição de sentido” (Broad e Mazzaro, 2015). No urbanismo da cidade antiga pré-industrial, um bom exemplo dessa capacidade de atribuir ao espaço o carácter do “lugar” era muitas vezes conseguido com as fontes que para além de originalmente serem puramente funcionais, ligadas às nascentes ou aos aquedutos para prover água potável para beber ou banhar-se, adicionalmente as fontes eram utilizadas como esculturas representativas da história da cidade, da região, da cultura popular ou erudita. Eram ainda lugar de reunião diária, especialmente das mulheres na sua função de recolha de água para a vida doméstica. Embora a razão original das fontes de água comunitária seja obsoleta na maioria dos casos, elas continuam a servir como lugares de encontro para os habitantes e visitantes das cidades. Os fenómenos do espaço público na contemporaneidade vêm também a ser objeto de interesse por parte da sociedade civil. O que faz um bom lugar? é a questão colocada por grupos e movimentos de intervenção política[4] focados nas práticas e formas da sua apropriação do espaço público.

O uso público do espaço público nas ações ordinárias que reagem à vida cotidiana nos grandes centros urbanos e colocam ênfase na experiência do corpo. Nas apropriações auto expressivas e autorreguladas, em seu caráter de experimentação espontânea dos espaços, que apontam novas práticas simbólicas, permitem cruzamentos interculturais e hibridizam os signos fixos de identificação do uso do espaço público advindos de um projeto "culto". Nas culturas e práticas do cotidiano, amparadas nas estruturas materiais da cidade, nas iniciativas e ações provocativas dos corpos, que tornam novamente visíveis a atmosfera, os traçados, a espacialidade da relação tempo-espaço.

A SEGURANÇA URBANA COMO DIREITO À CIDADE

Desde a antiguidade até à época medieval, as “muralhas, vedações e paliçadas assinalavam os limites entre «nós» e «eles», (…): os inimigos eram os que ficavam do outro lado da vedação” (Bauman, 2006, pp. 58-59). Hoje essas muralhas passaram para dentro da cidade. Escreve Teresa Caldeira: “São Paulo, hoje em dia, é uma cidade de muralhas. Levantam-se por toda a parte barreiras materiais: à volta das casas e dos blocos habitacionais, dos parques, das praças, dos prédios de escritórios e das escolas (…). Uma nova estética da segurança preside a todo o tipo de construções, e impõe uma lógica sem precedentes baseada na vigilância e no isolamento” (1996). A questão da segurança urbana é atualmente um dos principais problemas que se colocam aos Estados e governos regionais e municipais. A ausência de segurança urbana restringe o direito a cidade. Devolver às pessoas o seu espaço na cidade constitui o objetivo de várias políticas públicas que procurar estabelecer medidas concretas para favorecer o uso por parte da população dos espaços públicos. Um planeamento urbano desempenha um papel chave para “fomentar o livre movimento das pessoas mediante o desenho de espaços e conexões seguras[5]. Este modelo de planeamento é desenvolvido numa “perspetiva de género que reconhece aqueles grupos tradicionalmente esquecidos na hora de projetar”[6]: população infantil, nas mulheres, nas personas dependentes, nos idosos, nas pessoas com menos recursos.

A DIMENSÃO ESTÉTICA, A IDENTIDADE E A MEMÓRIA

A dimensão estética sempre foi uma das qualidades do espaço urbano. Essa qualidade expressa-se não só pelos edifícios que dão volume às praças e ruas, mas também pela arte pública e monumentos que os povoam e através dos quais se faz a exaltação da cidade e das suas mitologias nos seus santos, heróis e outras representações da memória coletiva. Alguns monumentos públicos podem ser controversos for razões especificamente estéticas, culturais ou políticas face a narrativas que estão sendo interrompidas ou desafiadas. O tema tem sido motivo de debate público e de vários questionamentos à escala global. Num artigo intitulado “Europe's monumental challenge” Aitor Hernández-Morales refere que "Em lugares como a Grã-Bretanha, ainda há um grande debate a ser feito sobre figuras como Winston Churchill, que foi um grande político, mas também um defensor do colonialismo e das ideologias racistas."[7] No mesmo artigo o autor cita Urte Evert do Spandau Citadel museum, que “É importante preservar estas estátuas, num museu ou até nos seus lugares originais em espaço aberto com uma apropriada contextualização histórica (…) mesmo o pensamento ao encontra-las possa ser desconfortável ou ate doloroso, essas emoções ajudam-nos a aprender do passado e refletir sobre os valores que temos na sociedade.” O tema é controverso e abre um forte debate sobre o espaço público e a arte pública como elementos identitários e de memória.

Nos tempos contemporâneos, a forte presença da Arte Urbana nos espaços públicos, influencia o modo como percebemos e pensamos a relação tempo-espaço, o lugar, a paisagem. A partir do privilégio de “uma erótica da arte” (Sontag, 1964, p. 10)[8]. Na intromissão das esculturas urbanas em suas inquietudes a respeito das relações de escalas, evidenciando a relação da obra com a arquitetura, o espaço urbano. Nas intervenções urbanas e instalações efêmeras que denunciam o abandono do espaço público, a exemplo das empreitadas dos eventos Arte::Cidade[9]. Na presença fugaz dos tags, desenhos, graffitis, pinturas que singularizam fachadas, empenas, muros, cantos, bueiros e enfatizam uma nova percepção da paisagem urbana.

Esta complexa multilariedade de geografias sociais, topológicas, afetivas tem importantes implicações na nossa própria experiência e perceções das cidades que habitamos e dos bairros em que vivemos. Interessa conversar sobre esta complexidade.

 

Carlos Almeida Marques, (CIAUD-FA / CAPP-ISCSP) Universidade de Lisboa

Maria Isabel Villac, Editora do Caderno de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo

 

Notas

[1] O conceito de `espaço público interno´ pode ser dividido, de um modo geral, em duas categorias. Uma categoria constituída por `espaços internos do domínio público´ “cuja função, por si próprios, é satisfazer necessidades coletivas, isto é, têm inerente à sua existência a utilização pública. (…) possuem utilidade pública inerente à sua existência e utilização. E por isso não se concebe que sejam objeto de propriedade privada e devam estar sob o domínio de entidades públicas e num regime em que seja permitido que cumpram o seu destino”. In CAETANO, Marcelo (2003). Princípios Fundamentais do Direito Administrativo, Livraria Almedina, Coimbra, p. 325.

[2] Ex: BLOCK BY BLOCK https://www.blockbyblock.org/ ; SIMCITY https://www.ea.com/pt-br/games/simcity .

[3] HEXAGON, disponível em  https://cities-today.com/industry/modernizing-city-mechanics-with-digital-twins/ ; ESCRI, disponível em  https://www.esri.com/en-us/capabilities/geoai/overview .

[4] Project for Public Spaces, disponível em https://www.pps.org/ ; Ideal Spaces Working Group, disponível em https://www.idealspaces.org/manifesto/

[5] Ley 11/2018, de 21 de diciembre, de ordenación territorial y urbanística sostenible de Extremadura. Artículo 10 - Criterios de ordenación sostenible.

[6] Ley 11/2018, de 21 de diciembre, de ordenación territorial y urbanística sostenible de Extremadura. EXPOSICIÓN DE MOTIVOS III

[7] POLITICO’s Global Policy Lab: Living Cities, by AITOR HERNÁNDEZ-MORALES

OCTOBER 5, 2023. Disponível em https://www.politico.eu/article/decolonizing-cities-hitler-stalin-fascism-history-nazism/

[8] «Em Lugar de uma Hermenêutica, necessitamos de uma Erótica da Arte». (Sontag, 1964).

[9] Arte:Cidade, projeto de intervenções urbanas realizado na cidade de São Paulo em três distintos momentos. A saber: A Cidade e seus fluxos, 1994; A cidade e suas histórias, 1997; Zona Leste, 2002. Organizador e curador Nelson Brissac. Ver: https://www.pucsp.br/artecidade/indexp.htm

 

Referências

AUGÉ, Marc (2005). Não Lugares – Introdução a uma Antropologia da Sobremodernidade, 90 Graus Editora Lda., Lisboa.

BAUMAN, Zygmunt (2006). Confiança e Medo na Cidade (título original: Trust and Fear in the Cities – Seeking Shelter in Pandora´s Box or Fear, Security, and the City Living with Strangers), Relógio d´Água, Lisboa.

BROD, Rodrigo e MAZZARINO, Jane (2014). O que fica, o que flui e o que fala: lugares identitários no ambiente urbano, in Articles - Ambient. soc. 18 (4) Oct-Dec 2015, Anppas / Revista Ambiente e Sociedade - São Paulo - SP – Brazil. https://doi.org/10.1590/1809-4422ASOC931V1842015 .

CALDEIRA, Teresa (1996). Fortified Enclaves: The New Urban segregation, in Public Culture, 8, (2): 303–328, https://doi.org/10.1215/08992363-8-2-303

CERTEAU, Michel de, GIARD, Luce, MAYOL, Pierre (2006. L´Invention du Quotidien, Editions Gallimard - Folio essais, Paris.

DOXIADIS, Constantinos A. (1975). Anthropopolis: City for Human Development, W. W. NORTON & COMPANY INC, New York.

GOFFMAN, Erving (1956). The presentation of Self in Everyday Life, Social Sciences Research Centre Monograph Nº. 2, University of Edinburgh.

KOCIATKIEWICZ, Jerzy, KOSTERA, Monika. “The Anthropology of Empty Spaces”, in Qualitative Sociology 22/1, 1999, pp. 37-50, Human Sciences Press, Inc.

MEAN, Melissa e TIMS, Charlie (2005). People Make Places: growing the public life of cities, Demos, Londres.

ORFF, Kate (2016). Next-Century Collaboration between Design and Climate Science, cap. in Lars Müller Publishers, Climates: Architecture and the Planetary Imaginary, The Avery Review, Columbia Books on Architecture and the City.

PEIXOTO, Nelson. A cidade e seus fluxos. Disponível em <http://www.pucsp.br/artecidade/novo/ac2/30.htm> Acesso em: 17 de dezembro de 2015.

SONTAG, Susan (1964). Against interpretation, 1964. Trad. esp. Contra la interpretación. Madri: Santillana, 1996.

 

2023-1: ÁGUA E CIDADES: URBANISMO E ARQUITETURA DAS CIDADES

A infraestrutura dos territórios coloniais obedeceu à lógica da exploração territorial que deixou marcas profundas na paisagem construída. A água foi e é foco na dinâmica da ocupação do território e é fato na fundação de cidades.

Na historiografia e na iconografia, é possível apreciar que os cursos d’água desempenharam um papel fundamental no desenvolvimento das cidades, fornecendo alimentos, proporcionando recreação e por seu potencial de navegação, facilitando a circulação de mercadorias. Na modernidade, no entanto, os recursos hídricos passam a ser considerados como obstáculos ao crescimento urbano, tornando-se alvo de intervenções e transformações disciplinantes. Atualmente as águas urbanas têm múltiplos usos nos quais se observa toda sorte de impactos que ainda geram um quadro que resulta em poluição, desperdício e redução de oferta para o consumo. Vivemos uma crise hídrica paradoxal: de um lado a escassez agravada pela desigualdade social, falta de manejo e usos sustentáveis; e do outro lado a ampliação dos desastres naturais representados pelas enchentes e inundações.

Na contemporaneidade, reconhecemos a demanda de leituras, análises e propostas que considerem as águas urbanas como parte das infraestruturas urbanas, dos processos de produção e construção social das cidades, sua importância nos modelos de desenvolvimento. E se hoje as cidades ainda carregam as cicatrizes da violência e a exclusão colonial e o deterioro dos recursos hídricos na idade moderna, o que se propõe é a transição e/ou adaptação da paisagem da cidade contemporânea sob um olhar ativo de produção de conhecimento crítico, pelo qual histórias, processos, relações de apropriação, associação e ressignificação poderiam ser reconstruídos.

Esta chamada à submissão de artigos propõe uma reflexão sobre a paisagem, a partir de um comprometimento político com a crítica ao colonialismo, no sentido de um resgate da água como direito essencial. Em particular, através das disciplinas da arquitetura e do urbanismo, em estudos que, sem excluir polissemias e contradições, proponham novas questões e novas proposições, acerca do projeto, em suas várias escalas.

Na situação real do território, como pensar o projeto, da arquitetura à cidade, a partir do desígnio de reverter o processo que usou a água como parte de um processo de desterritorialização urbana é uma das questões propostas. Nesse contexto, este edital convida docentes, discentes e profissionais do projeto a enviar artigos que discutam a temática ou expandam seus horizontes de modo a mobilizar conceitos e práticas de reparação da paisagem e da desagregação de experiências.

Por um lado, portanto, a discussão de dinâmicas de regime hídrico, como premente necessidade de avançar no conhecimento e na inovação associados à adoção de práticas de manejo e gestão das águas urbanas como questão central nos processos de produção das cidades em suas diferentes escalas e temporalidades: na arquitetura, na cidade, na escala do território.

Em complementaridade, o direito ao uso da água na articulação de normas que visam garantir, minimizar os efeitos de eventos críticos (secas e inundações). Da mesma maneira, o projeto como promoção e construção do território e de uma cidade para todos, democrática, calcada no direito à cidade.

Cadernos de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, neste edital, faz, portanto, a convocação de artigos que, a partir da A água, como agente e alento na formação de novos olhares na produção de conhecimento técnico e crítico seja capaz de (re)conectar mundos de vida, sociabilidade, subjetividades e comunidades no território e nas cidades.

Esta chamada receberá artigos até dia 24 de fevereiro de 2023. Este número da revista será editado também em inglês, cabendo aos autores a responsabilidade pela tradução. Os artigos deverão ser traduzidos somente após sua avaliação positiva e indicação para publicação. A equipe do Cadernos indicará oportunamente os tradutores autorizados.

 

2022-1: PROJETAR EM TEMPOS DE MUDANÇAS CLIMÁTICAS: ARQUITETURA E CIDADE

A atual crise socioambiental é o principal desafio que o mundo enfrenta. De proporções e complexidade inéditas na história da humanidade, seu desfecho não somente é desconhecido, mas também, em qualquer cenário, trará consigo transformações importantes em relação aos processos de desenvolvimento tais como ocorreram até aqui. Para Pablo Solón, trata-se de uma "crise sistêmica, que só pode ser resolvida com alternativas sistêmicas", abrangendo meio ambiente, economia, sociedade, dinâmicas geopolíticas, as instituições e, por que não, o atual processo civilizatório. (SOLÓN, 2019, p. 13) Os desastres climáticos, cuja frequência e intensidade vêm aumentando em proporção devastadora, a destruição da biodiversidade e o recrudescimento da pobreza são três dos grandes problemas que articulam-se neste cenário (SOANES et. al. 2021, p. 4). As perdas humanas, causadas pela pandemia do COVID-19, são parte deste contexto de tão intenso desequilíbrio que se tornou plausível falar da extinção da humanidade. É sobre isso que fala a jornalista Elizabeth Kolbert em A Sexta Extinção (2015): a possibilidade de que, por meio de nossas próprias atividades, estejamos nos encaminhando para a irreversível auto-destruição.

A ação humana é hoje, reconhecidamente, um dos fatores que interagem na dinâmica climática planetária. A escala, variedade e duração das alterações geológicas e atmosféricas produzidas pela humanidade vem justificando a denominação de nossa época não mais como "Holoceno", como tradicionalmente, mas como "Antropoceno": rochas, geleiras, sedimentos marinhos, dentre outras fontes de amostras, conterão vestígios das atividades humanas daqui a milhões de anos, estejamos aqui ou não. (LEWIS e MASLIN, 2015, p. 171) Dentre as atividades impactantes, a emissão dos gases que causam o efeito estufa é o principal fator responsável pelo desequilíbrio entre a recepção da radiação solar e a emissão de radiação infravermelha, causando o aquecimento da Terra, elevando o nível do mar, aumentando o número de ocorrências e a intensidade de ventanias, tormentas, inundações, secas, incêndios naturais, ondas de calor, dentre outros efeitos problemáticos (MORA et. al. 2018). Embora os sistemas naturais absorvam uma determinada quantidade de gases, não alcançam a capacidade de absorver todo o volume lançado anualmente na atmosfera, situação agravada pelo desmatamento (CETESB, 2020).

As atividades de construção civil e as edificações comparecem como uma das maiores responsáveis pela emissão de gases do efeito estufa. Em 2018, eram responsáveis por 36% do consumo de energia e 39% do total de emissões de CO2, ao passo que os sistemas motorizados de transporte respondiam por 28% do consumo de energia e 23% das emissões de CO2 (Nações Unidas, 2018). O agronegócio é também uma atividade de alto impacto ambiental. Enquanto os alimentos de base vegetal respondem por 25% das emissões de CO2 resultantes da atividade, a alimentação à base de carne representa 75% (C40Cities, 2019). No Brasil, o aumento da área de cultivo de soja expandiu-se a uma taxa anual média de 6,7% entre as safras de 2000/01 e 2015/16. Em números, o volume de grãos saltou de 38,4 milhões de toneladas para 95,4 milhões nesse período (ESCHER E WIKINSON, 2019). Pouco menos de metade da produção de soja brasileira foi destinada ao mercado interno de margarinas, biodiesel e ração para frangos e suínos em 2013. (Idem)

Apesar destes números brasileiros, nenhum país latino-americano comparece entre os dez maiores poluentes do mundo, posições ocupadas em 2021 pela China em primeiro lugar e pelos Estados Unidos em segundo (WORLD POPULATION REVIEW, 2021). A América Latina, região que abriga a maior biodiversidade no mundo, é uma das mais afetadas pelas mudanças climáticas (CENTENERA, 2021), condições agravadas pelo alto índice de pobreza e vulnerabilidade social e territorial latino-americano. Milhões de pessoas moram em condições precárias, sendo não apenas mais suscetíveis aos efeitos de tormentas, inundações, deslizamentos, secas, mas também contando com menos recursos de recuperação de crises e desastres, e pouco ou nenhum auxílio das instituições públicas. (LIMA e LOEB, 2021; PISANI, 2018) Neste contexto, como pensar o projeto, da arquitetura à cidade? Compreendendo que a visão sistêmica abrange a relação e interação entre todas as variáveis que compõem processos de desenvolvimento, como trabalhar a favor de uma ética de equidade social, econômica, ambiental na proposição de políticas públicas e projetos de extensão envolvidos com o projeto da arquitetura e da cidade?

A chamada para este número da Cadernos de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo convida para a submissão de artigos que proponham novas questões, e novas proposições, acerca do projeto, em suas várias escalas, para os tempos de mudanças climáticas. Interessam-nos artigos que discutam a temática, ou expandam seus horizontes, a partir das seguintes abordagens:

  • Projeto de edificações para a mitigação dos efeitos das mudanças climáticas em situações de vulnerabilidade social e territorial;
  • O desenho da cidade em tempos de mudanças climáticas;
  • Técnicas e tecnologias de baixo impacto ambiental;

 

REFERÊNCIAS

C40CITIES. Addressing Food-related consumption-based emissions in C40 cities: in focus. C40 Cities / ARUP / University of Leeds, 2019. Disponível em: <https://www.c40knowledgehub. org/s/article/In-Focus-Addressing-food-related-consumption-based-emissions-in-C40-Cities>. Acesso em 21 maio 2020.

CENTENERA, M. Latinoamérica pide financiación internacional para afrontar el cambio climatico. El País, Buenos Aires, 08 Setembro 2021. Clima y Medio Ambiente, s.p.  Disponível em: https://elpais.com/clima-y-medio-ambiente/2021-09-08/latinoamerica-pide-financiacion-internacional-para-afrontar-el-cambio-climatico.html. Acesso em 19 Janeiro 2022.

ESCHER, F.; WILKINSON, J. A economia política do complexo Soja-Carne Brasil-China. Revista de Economia e Sociologia Rural, Brasília, v. 57, n. 4, p. 656-678, 2019. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-20032019000400656&lng= en&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em 19 Janeiro 2022.

KOLBERT, E. A Sexta Extinção: uma história não natural. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015.

LEWIS, S. L.; MASLIN, M. A. Defining the Anthropocene. Nature, v. 519, p. 171-180, 2015. Disponível em: https://www.nature.com/articles/nature14258. Acesso em 19 Janeiro, 2022.

LIMA, A.G.G.; LOEB, R.M. Cidade, Gênero e Mudanças Climáticas: Parelheiros como estudo de caso na capital paulista. Ambiente e Sociedade, v. 24, p. 1-21, 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/asoc/a/mjkD3Xn83XZRq4wHn4WjFDK/?lang=pt&format=pdf. Acesso em 19 Janeiro, 2022.

MORA, C.; SPIRANDELLI, D.; FRANKLIN, E.C.; LYNHAM, J.; KANTAR, M.B.; MILES, W.; SMITH, C.Z.; FREEL, K.; MOY, J.; LOUIS, L.V.; BARBA, E.W.; BETTINGER, K.; FRAZIER, A.G.; COLBURN IX, J.F.; HANASAKI, N.; HAWKINS, E.; HIRAPAYASHI, Y.; KNORR, W.; LITTLE, C.M.; EMANUEL, K.; SHEFFIELD, J.; PATZ, J.A.; HUNTER, C.L. Broad threat to humanity from cumulative climate hazards intensifies by greenhouse gas emissions. Nature Climate Change, Vol. 8, n. 12, p. 1062-1071, 2018.  Disponível em: https://www.nature.com/articles/s41558-018-0315-6. Acesso em 19 Janeiro 2022.

NAÇÕES UNIDAS. 2018 Global Status Report Towards a zero-emission, efficient and resil- ient buildings and construction sector. Nova Iorque: International Energy Agency (IEA) for the Global Alliance for Buildings and Construction (Global ABC), 2018. Disponível em: <https:// globalabc.org/uploads/media/default/0001/01/f64f6de67d55037cd9984cc29308f3609829797a. pdf>. Acesso em: 24 agosto 2019.

PISANI, M.A. Arquitetura e Urbanismo Resilientes às Inundações: Planejamento de Áreas Inundáveis e Tipologias de Edificações. Cadernos de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo. V. 18, n. 2, p. 145-163, 2018.

SOANES, M; BAHADUR, A.; SHAKYA, C.; SMITH, B.; PATEL, S.; DEL RIO, C.R.; COGER, T.; DINSHAW, A.; PATEL, S.; HUQ, S.; MUSA, M.; RAHMAN, F.; GUPTA, S.; DOLCEMASCOLO, G.; MANN, T. Principles for locally led adaptation: a call to action. London: International Institute for Environment and Development, January, 2021. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/resrep29070. Acesso em 19 Janeiro 2022.

SOLÓN, P. (org.). Alternativas Sistêmicas: Bem Viver, decrescimento, ecofeminismo, direitos da Mãe Terra e desglobalização. São Paulo: Editora Elefante, 2019.

WORLD POPULATION REVIEW. Carbon Footprint by Country, 2021. Disponível em: https://worldpopulationreview.com/country-rankings/carbon-footprint-by-country. Acesso em 19 Janeiro 2022.

 

2021-1: CIDADE, CIDADANIA, TERRITÓRIO

Que cidade queremos? Como colaborar com projetos e raciocínios para cidades mais humanas, democráticas?

A pandemia nos colocou frente à necessidade de criação e reprojeto dos espaços de uso público. As eleições municipais de 2020 irão possibilitar possíveis revisões de Planos Diretores. Este é um momento, portanto, de dialogarmos sobre solidariedade social, ampliação de direitos, e exercer a ação do projeto como instância política.

Para construir, materializar, a democracia no território, atuando para sanar as Desigualdades Socioespaciais, incentivar Políticas Públicas para uma cidade mais justa e oferecer vida digna a todos, ao projeto de Arquitetura e Urbanismo compete um esforço para contestar o núcleo da desigualdade e da alienação. Um ânimo, portanto, que não repete os desacertos da cidade do capitalismo cujos valores são determinados pelo mercado, mas comprometido em atribuir às ações humanas valores construídos pela consciência e ação coletivas.

Planos e projetos participativos: uma disposição contemporânea

No Brasil, como na América Latina, a maioria das experiências que empregam o método de projeto participativo está diretamente atrelada aos movimentos sociais. Um dos precursores em trabalhar com o projeto participativo foi o arquiteto italiano Giancarlo de Carlo, membro do grupo Team 10, que nas décadas de 1960 e 1970 propôs etapas metodológicas para desenvolver com êxito os projetos participativos, como o projeto de habitação operária da Vila Matteotti e o plano de desenvolvimento urbano da cidade de Urbino.

O projeto participativo possui várias definições, nacionais e internacionais, mas podemos dizer que existe um denominador comum entre elas:  o objetivo de trabalhar pelo bem coletivo. Neste processo se estabelecem relações dialéticas entre as necessidades, as determinantes físicas e legais e as condicionantes sociais e culturais.

Se o ambiente construído for planejado e projetado como um ato social, cultural e coletivo, levando em consideração as especificidades e dinâmicas do local, sua singularidade, os seus cidadãos terão muito mais chances de sentido de pertencimento e consequentemente colaborará de forma eficaz para o sucesso das intervenções. A arquitetura participativa fica fora da prática tradicional de projeto e, ao abranger o coletivo no processo de construção do bem comum, garante o respaldo desse grupo na gestão dos processos de intervenção.

A partir destas considerações, o “Caderno de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo” acena a autoras e autores, que pesquisam as diversas variantes deste tema, para que possam refletir sobre a arquitetura e urbanismo participativos, a partir de teorias ou experiências que resultaram em mobilizações e a produção de planos, projetos e/ou obras. Dentro de muitas vertentes, esta chamada se refere, portanto, a projetos participativos desenvolvidos, construídos ou não, com os seus possíveis enfoques: social, ambiental, cultural, econômico, político e espacial.

As diversas contribuições podem atender a quaisquer dos eixos de investigação: as perspectivas históricas do projeto participativo; os debates sobre a arquitetura participativa e a questão autoral; a arquitetura participativa como ação social; organização e metodologias de arquitetura participativa; as ações de coletivos e ONGs junto às comunidades; o atendimento à diversos grupos sociais por meio do projeto participativo; a sinergia dos diversos profissionais junto a formulação de projetos participativos e análises fundamentadas de estudos de caso.

 

Maria Isabel Villac

Editora

 

2020-2: MULHERES, ARQUITETURA E CIDADE EM TEMPOS DE CRISE

Concluída a segunda década do Século XXI, falar sobre o papel de arquitetas, urbanistas e designers na cultura e no ambiente construído não é mais uma novidade, felizmente. Um corpo crescente de estudos, debates e publicações nos mais diversos âmbitos, da política às áreas criativas, vêm promovendo o reconhecimento da presença, contribuição e protagonismo de mulheres dos mais variados grupos e comunidades.

Historicamente, espaços de atuação possíveis para as mulheres latino-americanas  foram encontrados nos âmbitos da palavra escrita. Publicando em revistas e jornais como editoras e colunistas, produzindo livros e resenhas, as arquitetas, urbanistas e designers participaram ativamente da construção de perspectivas sobre o desenvolvimento de seus campos profissionais, desde as primeiras décadas do século XX.

Foi também no século passado que a esfera da habitação, compreendendo o projeto de residências, de seus jardins, interiores e utensílios, representou a possibilidade que muitas mulheres encontraram para projetar e também construir - às vezes como autônomas e titulares de seus escritórios - mas em geral anônimas, associadas a seus maridos ou trabalhando em escritórios de colegas homens. No âmbito do serviço público abriram-se várias oportunidades de empregos que as mulheres aproveitaram, o que explica a riquíssima variedade de testemunhos de arquitetas e urbanistas com passagem por prefeituras e outros órgãos governamentais.

A principal fronteira a ser cruzada pelas arquitetas e urbanistas foi representada pelos projetos públicos e privados de prestígio: sedes de governos, bancos e empresas, museus, centros culturais, residências sofisticadas e outros projetos permaneceram, no século XX, como domínio preferencial de arquitetos do sexo masculino. Por sua vez, as abordagens historiográficas arquitetônicas mais disseminadas foram aquelas que valorizavam principalmente este tipo de produção, muitas vezes omitindo a autoria das protagonistas e colaboradoras mulheres, ou registrando seus nomes apenas com as iniciais seguidas do sobrenome.

De modo similar, nos variados campos de atuação do Design, as fronteiras mantiveram--se nos limites da liderança de escritórios, dos trabalhos de prestígio e do reconhecimento de nomes de mulheres nas narrativas históricas e teóricas predominantes. Tanto na arquitetura e no urbanismo quanto no design, os discursos sobre o protagonismo das mulheres restringiram-se por muito tempo, principalmente a seus papeis de usuárias dos espaços e produtos, e não de suas criadoras.

Com a emergência da crise mundial decorrente da pandemia de COVID-19, doença respiratória aguda causada pelo novo coronavírus, o protagonismo das mulheres na política e nas ciências de saúde ganhou destaque nos meios de comunicação internacionais. Frente à epidemia que até o lançamento desta chamada havia contaminado mais de 6 milhões de pessoas causando número de mortes superior a 370 mil[1], lideranças femininas na política, na ciência e nos movimentos sociais fizeram a diferença.

Países liderados por mulheres têm mostrado respostas mais eficazes na prevenção à transmissão da doença, realização em grande escala de testes e promoção de tratamento aos contaminados. Angela Merkel, na Alemanha, Tsai Ing-wen em Taiwan, Jacinda Arden na Nova Zelândia, Katrín Jakobsdóttir na Islândia, Sanna Marin na Finlândia, Erna Solberg na Noruega e Mette Frederiksen na Dinamarca obtiveram melhores resultados em proteger e tratar suas populações, conseguindo retomar as atividades econômica de seus países de modo seguro.

No Brasil, a médica Ester Cerdeira Sabino realizou o mapeamento genético do coronavírus, coordenando uma equipe de 27 pessoas, 17 das quais mulheres. Na Universidade de Oxford, Reino Unido, a imunologista brasileira Daniela Ferreira está a frente da testagem de uma das 70 vacinas contra o vírus atualmente sendo desenvolvidas ao redor do planeta. No âmbito dos movimentos sociais por habitação digna, a advogada Maria da Graça Xavier, coordenadora geral da União de Movimentos de Moradia e Carmen Silva, do Movimento Sem Teto do Centro, lideram ações de cadastramento da população para recebimento de auxílios, tratamentos e kits de higiene, bem como promovem ações de orientação à prevenção e aos cuidados com a doença.

Com este complexo cenário em vista, este número do “Cadernos de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo” convida autoras e autores a levar adiante as reflexões contemporâneas sobre o protagonismo das mulheres, profissionais ou não, em campos de atuação afetos à Arquitetura, Urbanismo e Design.

Convidamos contribuições aos seguintes eixos de discussão: a identificação e reconhecimento das autoras eclipsadas; os meios e modos de contribuição das autoras em seus universos de trabalho; a análise de como as criadoras mulheres são abordadas nos discursos históricos e teóricos sobre arquitetura, urbanismo e design; a contribuição das mulheres no âmbito das vulnerabilidades sociais e territoriais; as perspectivas feministas na pesquisa em arquitetura, urbanismo e design; o protagonismo das estudantes de arquitetura tanto em sua trajetória acadêmica como na promoção do reconhecimento das mulheres e as condições específicas que enfrentam em sua formação e percurso profissional; protagonismo das mulheres em tempos de crise.

[1] Fonte: Johns Hopkins CSSE

 

2020-1: O PAPEL SOCIAL DO PROJETO

O Caderno de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo convida docentes, discentes e profissionais arquitetos, urbanistas e designers a discorrerem sobre suas pesquisas e projetos que contemplem o papel social do projeto. O número se propõe em duas frentes temáticas, que se pretende discutam as demandas contemporâneas de habitação – arquitetura e cidade.

O primeiro apartado tem foco em processos construtivos em arquitetura, com eventual ação colaborativa entre técnico e usuário. E, com vistas ao resgate de técnicas construtivas e materiais tradicionais, o hibridismo entre materiais e técnicas de tempos distintos, a invenção de novas técnicas com uso de materiais novos ou tradicionais, o projeto de módulos repetíveis que possam ser montados e desmontados no canteiro.

O olhar também enquadra o precário que se adapta, se transforma, se reinventa, na casa que é transporte, que é comércio, que é depósito, que é casa; no abrigo efêmero das atividades errantes; no abrigo encontrado nas fendas das infraestruturas urbanas, nos arranjos possíveis nos edifícios desocupados em áreas providas de infraestrutura.

Diante da pobreza, das guerras, dos êxodos, das catástrofes climáticas, a questão da construção da arquitetura e as pesquisas inovadoras, por um lado. E, desde outro ponto de vista, frente aos espaços residuais da cidade moderna, a questão do projeto de habitação como possibilidade iminente e oportuna. Neste apartado, a ênfase é a inter-relação entre arquitetura e desenho urbano, as interações e a vivacidade urbana advindas dessa reciprocidade.

 

2019-1: ARQUITETURA E POLÍTICA

Ana Gabriela Godinho Lima

A chamada para a edição de 2019-1 do “Cadernos de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo” destaca um dos maiores problemas hoje enfrentados pelos países latino-americanos: o aumento exponencial do número de pessoas que residem em áreas urbanas. Hoje 85% da população da América Latina vive nas cidades, em grande parte com algum grau de precariedade e carentes de infraestrutura essencial. Com urbanização incompleta, estes locais estão sujeitos a riscos ambientais e à violência. A escala dos problemas sociais e urbanos nos leva a dirigir mais e mais esforços no sentido de dar não apenas visibilidade, mas também voz às angústias, necessidades e anseios das pessoas que vivem em situações urbanas inaceitáveis, de pobreza, marginalidade e exclusão.


A legitimidade da produção cultural e dos valores das comunidades instaladas em situação precária nas cidades tem sido cada vez mais reconhecida, merecendo atenção e transformando abordagens não apenas de arquitetas, arquitetos e urbanistas. Observa-se que o conjunto de manifestações culturais, de modos de produção e de vida nas diferentes comunidades habitando territórios informais, forma padrões complexos, em vários níveis e escalas, desafiando as lógicas e modos tradicionais de se estudar e interpretar essas manifestações. Nos últimos anos ganharam força os estudos e discussões acerca da proposição de desenhos urbanos participativos, que levem em conta, por exemplo, a escala e o desenvolvimento de crianças. Também se fortalece a ideia de cidades igualitárias, onde não só o desenho, mas também as decisões políticas contem com a participação equilibrada de mulheres e homens.

Autoras e autores como o arquiteto Nabil Bonduki e a arquiteta Raquel Rolnik vêm mantendo na agenda política as discussões sobre as condições de precariedade nas cidades e a preocupação com as condições de moradia e vida das pessoas mais pobres. Em 2014, Bonduki enfatizou a importância da superação de pensamentos retrógrados, como a dificuldade de aceitação, por setores das classes mais altas, do convívio e mistura com outras classes sociais. “É importante combater essa homogeneidade porque buscamos uma cidade menos desigual”. (Bonduki, in: Lamas, 2014)

Em seu livro A Cidade e a Lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo (1997), Rolnik já ponderava sobre o que considerou um dos aspectos mais interessantes da lei: o fato de, por um lado, aparentemente funcionar como uma “espécie de molde” da cidade ideal ou desejável e, por outro lado, determinar apenas a menor parte do espaço construído, uma vez que a forma concreta da cidade emerge das relações estabelecidas com as práticas de produção imobiliária.

Entretanto, como prossegue a autora, “ao estabelecer formas permitidas e proibidas acaba por definir territórios dentro e fora da lei, ou seja, configura regiões de plena cidadania e regiões de cidadania limitada.” Não apenas a lei se torna um marco delimitador de exercício de cidadania, mas, no caso das cidades latino-americanas, constituídas em grande parte por territórios informais, tem o efeito de relacionar diferenças culturais com sistemas hierárquicos. (Rolnik, 1997, p. 13-14)
Uma das questões com a qual a profissão da arquitetura e urbanismo se depara situa-se justamente nas tensões que emergem desta problemática: a relação das diferenças culturais expressas nas construções erguidas em áreas de vulnerabilidade com os sistemas hierárquicos que tendem a posicioná-las como algo tão precário como o território que ocupam. E isso não é inteiramente verdadeiro. Por outro lado, a mesma relação “diferença cultural x escala hierárquica” tende a posicionar o conhecimento produzido pelo projeto de arquitetura como algo pertencente ao outro polo, ou seja, destinado ao mundo da formalidade e do capital. E isso, definitivamente, não é verdade.

Do ponto de vista da representação política, cabe refletir sobre os caminhos para a construção de articulações mais estreitas entre os conhecimentos e as contribuições provindas da Arquitetura e do Urbanismo e as agendas globais e locais de combate às desigualdades, como a social e a de gênero, e de oferta de serviços de saúde, educação, cultura, bem como a promoção de melhores condições para o desenvolvimento das crianças. Para tornar-se realidade, cada uma dessas pautas necessita de um suporte físico projetado e construído que a abrigue, e de infraestrutura urbana projetada e construída que permita sua implementação e funcionamento.

A ideia de que os conhecimentos provindos do projeto de arquitetura impõem-se de modo autoritário no território informal esvazia-se ao examinarmos o real. Como se sabe, o real nem sempre está ao alcance do google. Arquitetas e arquitetos trabalhando diligentemente há décadas em territórios precários em colaboração com comunidades vulneráveis não são facilmente visíveis à luz das buscas virtuais. Talvez tal “invisibilidade” seja uma das razões pelas quais a contribuição deste contingente de profissionais não venha sendo reconhecida, nem alvo de tantos estudos e tanta visibilidade quanto seria desejável. Este conjunto de profissionais possui uma característica em comum: divulga muito pouco o resultado de seus trabalhos. E é justamente da ação no território que pode surgir e emanar a inovação que, quando articulada à pesquisa, pode abrir novos caminhos com grande potencial de escala e de transformação na redução das desigualdades.

Como reconhecer, analisar, sistematizar e dar a devida visibilidade aos conhecimentos de projeto e construção que vêm sendo desenvolvidos na prática, e pela prática de trabalho nas comunidades e com as comunidades, de modo a que elas assumam o papel relevante que precisam ter nas pautas e agendas políticas, locais e internacionais?

Em síntese, com o propósito de ampliar o debate sobre as realidades concretas em que arquitetas, arquitetos e urbanistas vêm trabalhando para transformar os territórios urbanos precários em lugares melhores para se viver, inclusivos, acessíveis, sustentáveis e, acima de tudo, humanos, este número da revista convida a refletir sobre as pautas que as ciências da Arquitetura e do Urbanismo têm a propor para os planos de governo de candidatas e candidatos, para a formulação de políticas públicas e para a construção de agendas locais e mundiais de desenvolvimento.

Referências bibliográficas
Lamas, Julio. Entrevista com Nabil Bonduki sobre o Novo Plano Diretor de São Paulo. Archdaily, 03 Dezembro de 2014. Disponível em <https://www.archdaily.com.br/br/758385/entrevista-com-nabil-bonduki-sobre-o-novo-plano-diretor-de-sao-paulo>. Acessado em 03 de Julho de 2018.

Rolnik, Raquel. A Cidade e a Lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo: FAPESP/Studio Nobel, 1997.

 

2019-2: CARTOGRAFANDO AÇÕES NO TERRITÓRIO: DIÁLOGOS ARQUITETURA CIDADE DESIGN

Maria Isabel Villac

Para contribuir com o projeto da cidade, a presente chamada de artigos para 2019-2 propõe publicar cartografias de microdinâmicas sócio espaciais que tenham como foco gerar projetos de pesquisa, extensão, arquitetura e urbanismo, bem como discutir significados e reflexões teóricas e programas que delas podem se originar. Dessa quer expandir o repertório de saber do Projeto que ampara e agencia a pluralidade da dinâmica da vida urbana, interrogar a crise da noção de cidade enquanto bem público, lugar do convívio e do conflito. E, em busca de uma relação interdisciplinar e multidisciplinar da arquitetura da cidade e do edifício e o design de artefatos com outras áreas do saber, privilegia as práticas urbanas com foco na sua relação com morfologias, tipologias e suportes e propõe compreendê-las como argumento do texto e das ações de projeto.

Na produção de significado sobre a vida pública, é necessário reconhecer que o desejo de uma vida pública, vitalizada e que se expressa primordialmente através de Práticas do cotidiano, as Culturas de convivência e o Corpo como paradigma da experiência, não pressupõe uma ordem comumente assumida pelo projeto da arquitetura e do urbanismo. Da mesma forma, o conceito de patrimônio imaterial ainda não contempla ações cotidianas como parte dos caráteres de domínio público, caracterizados por distintas situações discursivas, atividades transitórias, múltiplos públicos. (VILLAC et al, 2015).

Na cidade que apresenta novas formas de enunciação cultural da territorialidade urbana qual seria a ação do projeto associado a apropriações espontâneas e efêmeras apoiadas em estruturas físicas ordinárias da cidade? Como o projeto se solidariza com a densidade inesperada do "real vivido" (LEFEBVRE 1976) e, a exemplo da arte, valoriza a cidade consolidada com suas obras já produzidas (BOURRIAUD, 2009)? Dada a complexidade dos processos de produção e utilização das cidades, como a teoria se renova, se atualiza no sentido do vínculo com a realidade, entendendo-se “vínculo” como investigação, leitura e futura prospecção?

A presente edição do CadernosPós quer conhecer pesquisas e projetos que colocam grande estoque na poética do uso e apropriação no uso público do espaço, e trabalham com vestígios (GINZBURG, 1989) e novos protocolos de uso das estruturas formais existentes, entendidas "como suporte de experiências".
Para tal, sugere ênfase nas práticas que questionam a tradicional separação, no projeto, entre a autonomia da concepção e o compromisso que incorpora uma experiência previa de espaço. A "experiência" diz respeito ao uso público do espaço e sugere a ressignificação do vínculo cidade-arquitetura-artefato, com vistas ao entendimento do território como espaço material e espaço social (SANTOS, 1994); às "táticas" (CERTEAU 2011) que escapam das "estratégias" que excluem (ARANTES, 2007) e ao projeto que desenha uma "urbanidade" que controla e programa comportamentos (KOOLHAAS, 2010, p. 96).

O urbanista, o arquiteto, o designer que aprende com a experiência se aproximam e se envolvem com a dinâmica urbana e, também ele, se assume como sujeito da experiência. O sujeito da experiência abandona uma "fé perceptiva" que se apoia somente em um saber erudito que se impõe. Tem a possibilidade de renovar o urbanismo, a arquitetura e o design na relação intrínseca entre teoria e prática e projetar, não uma criação livre e compositiva, mas sim uma "resposta direta às exigências da vida e cujo projeto não pretende ser inventivo, mas essencialmente crítico" (ARGAN 1961, p. 23).

Referências bibliográficas

ARANTES, Otília, “Uma estratégia fatal: a cultura nas novas gestões urbanas”. In: ARANTES, Otília; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Ed. Vozes, 2007.

ARGAN, Giulio Carlo (1961). El concepto del espacio del barroco a nuestros días, curso proferido em Tucumán em 1957. Buenos Aires: Nueva Visión, 1961.

BOURRIAUD, Nicolas. Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins, 2009.
CERTEAU. Michel de (1990). A invenção do cotidiano – 1. Artes do fazer. 17ª. edição. Petrópolis: Vozes, 2011.

GINZBURG, Carlo (1986). “Sinais: Raízes de um paradigma indiciário”. In: Mitos, emblemas sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp. 143-179.

KOOLHAAS, Rem. "Espaço lixo". In: Três textos sobre a cidade. Barcelona: Gustavo Gili, 2010, pp. 67-111.

LEFEBVRE, Henri. La revolución urbana. Madri: Alianza Editorial S. A. 1976.

SANTOS, Milton. "O retorno do território". In: SANTOS, Milton; SOUZA, Maria Adélia; SILVEIRA, Maria Laura. Território: globalização e fragmentação. São Paulo: Hucitec, 1994.

VILLAC. M. I.; RUBANO, L. M.; KATO, V. R. C.; FEHR, L. "Patrimônio das “Artes do Fazer”". In: VII Fórum Mestres e Conselheiros: Agentes multiplicadores do Patrimônio. “Os desafios da educação patrimonial”. Belo Horizonte/MG: Instituto IEDS; MACPS; Ministério Público Estadual; IPHAN; IEPHA; Centro Universitário Izabela Hendrix, 2015. Eixo 8: A cidade, lugar da educação patrimonial. Artigo no. 138.